UFV planta maconha com aval da Justiça para estudos inéditos no Brasil
25 de novembro de 2020

Enquanto parte dos cientistas busca explorar os benefícios da cannabis à saúde, outra frente estuda as melhores variedades e condições de cultivo da planta da maconha. No Brasil, com a proibição de plantio e pesquisas desde os anos 1940, o tema enfrenta algumas barreiras, muitas ideológicas e preconceituosas.

Mas o conhecimento sobre a fitotecnia e a genética da planta está sendo recuperado por iniciativa de duas escolas de agronomia. Uma delas é a Universidade Federal de Viçosa (UFV-MG), que começou no mês passado, em parceria com a startup ADWA Cannabis, o primeiro trabalho no Brasil de melhoramento genético da cannabis.

O contrato de parceria entre a universidade e a startup foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) nesta quarta-feira (25/11). Outra iniciativa é da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que já adquiriu sementes selecionadas e inicia pesquisas de cultivo em parceria com a Canapse - uma associação de pesquisadores que desenvolve projetos sobre a cannabis medicinal para uso humano e veterinário.

O experimento em Viçosa (MG) começou com quatro variedades selecionadas a partir de sementes vindas da Colômbia e de países europeus. As plantas estão sendo caracterizadas e cultivadas para que, por meio de cruzamentos, se obtenha variedades aptas para cada uso e região do país.

Os cruzamentos resultarão em variedades brasileiras, seguindo regras do Registro Nacional de Cultivares (RNC) que o Ministério da Agricultura exige. Para comercializar qualquer muda ou semente no país, é preciso constar no RNC.

“Estamos fazendo a análise do comportamento das variedades que trouxemos de fora e iniciando cruzamentos para obter plantas melhoradas e adaptadas ao Brasil”, explica o engenheiro agrônomo Sérgio Barbosa Ferreira Rocha, fundador e diretor da ADWA.

“Enquanto no Brasil as grandes culturas agrícolas como soja e milho já possuem seus genes sequenciados, ainda não há um consenso sequer sobre a classificação taxonômica do gênero cannabis”, diz Dennys Zsolt Santos, engenheiro agrônomo e pesquisador da Canapse.

Sem "barato"

Enquanto no Rio de Janeiro a UFRRJ pesquisa o melhor manejo, o programa que se inicia em Viçosa prevê o cruzamento genético de quatro plantas de diferentes variedades. Segundo Rocha, cada uma vai resultar em 100 a 300 plantas com características diferentes, em um total que pode chegar a 1.200.

É a partir do cruzamento dessas linhagens que serão selecionadas as que atendem as necessidades do mercado e as condições de clima e cultivo no país. “Vamos identificar e testar os descendentes dessas plantas, buscar as características dos ancestrais de cada uma dessas variedades”, diz o engenheiro agrônomo.

As pesquisas nas duas escolas vão permitir o cultivo de variedades chamadas genericamente de cânhamo ou cannabis industrial. Essas plantas têm menos de 0,3% de tetra-hidrocanabinol (THC), componente psicotrópico presente nas flores da planta. São variedades que “não dão barato”, por isso não interessam ao mercado ilegal.

Em contrapartida, são ricas em canabidiol (CBD), componente altamente valorizado para fins terapêuticos, dermatológicos e alimentares. As fibras são empregadas na indústria têxtil, com rendimento três vezes maior que o do algodão, vantagem que se repete quando se compara o cânhamo com o eucalipto na produção da celulose.

As sementes dessas variedades são ricas em proteínas – mais do que a soja – e têm teor equilibrado de ômega 3 e ômega 6, considerado ideal para nutrição humana. Outras plantas são ricas em THC, componente psicotrópico essencial para determinadas formulações médicas.

Os programas das duas escolas não contemplam os chamados fins recreativos ou adulto. “Estamos pensando na legislação que temos e naquela que está sendo proposta para esse momento”, observa Sergio Rocha, referindo-se ao projeto de lei 399, que está em debate na Câmara e limita o cultivo à maconha medicinal e industrial.

A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, por sua vez, começou a organizar grupos de pesquisa dois anos atrás, quando a Anvisa trouxe para o debate o uso da cannabis medicinal.

“Percebemos que a cannabis era uma planta desconhecida. Mesmo na literatura internacional havia quase nada sobre o cultivo em clima tropical”, diz Ricardo Berbara, reitor da UFRRJ, professor titular de solos e um dos incentivadores do programa de cannabis.

Autorização da Justiça

 

Para as duas escolas, a proibição imposta sobre o manuseio e acesso à matéria prima da cannabis foi um grande desafio. No caso de Viçosa, foram os pesquisadores da UFV, em parceria com a startup ADWA, que obtiveram na Justiça decisão permitindo o cultivo da cannabis para pesquisa. Mesmo assim, a equipe optou por aguardar uma posição definitiva do Judiciário para começar o plantio.

“Uma decisão precária pode ser cassada e precisamos de segurança. Queremos fazer um programa de melhoramento de cannabis medicinal e isso envolve anos de trabalho, muitos recursos e equipamentos” diz Derly Silva, professor titular da área de melhoramento de hortaliças do Departamento de Agronomia da UFV. “Uma decisão liminar seria um instrumento muito frágil para isso”, complementa.

O advogado e diretor jurídico da ADWA, Rodrigo Mesquita, diz que um pedido de cultivo foi feito à Agência Nacional de Vigilância Sanitária em 2017, mas a Anvisa se declarou sem competência para essa autorização. “Lamentavelmente, as pesquisas com cannabis não possuem um marco regulatório estabelecido, por isso utilizamos a estratégia judicial”, explica o advogado. “Com o sucesso da ação, estabelecemos uma parceria entre a startup e a UFV para realizar a pesquisa”, explica.

No caso da UFRRJ, a escola pegou carona com a Canapse, associação que já tem autorização judicial para plantar e executar projetos de pesquisa com cannabis. “Como a Canapse é uma associação de pesquisadores, ela fez um convênio com a nossa universidade, e o programa será desenvolvido conjuntamente”, diz o reitor Ricardo Berbara. “Assim resolvemos o problema do acesso ao material sem infringir a legislação”, ressalta.

Três eixos

Compradas as sementes, as pesquisas estão sendo iniciadas em três eixos. O primeiro é o melhoramento, a variabilidade genética da planta, quando se busca o desenvolvimento de variedades adaptadas a condições tropicais. O segundo é o manejo, quando se estuda as necessidades de nitrogênio e potássio, se o pH deve ser ácido ou básico, se o clima ideal é mais frio ou o contrário.

E, finalmente, a questão de controle de qualidade e produção de fármacos, que está sendo coordenada pelo professor Siqueira Chaves. “Em paralelo, vamos construir um banco de germoplasma de sementes de cannabis”, diz Berbara, reitor da UFRRJ.

A opção por iniciar as pesquisas antes mesmo de o país regulamentar o plantio se deve a uma expectativa compartilhada por especialistas da área. Eles acreditam que em menos de dois anos o cultivo da cannabis para fins medicinais será autorizado no Brasil.

“Quando isso acontecer, vamos estar preparados para dar respostas ao agricultor, mostrar as variedades disponíveis e mais adequadas para nosso clima e ensinar o melhor manejo para o cultivo”, afirma Berbara. “Não estamos inventando a roda, estamos fazendo com a cannabis o que já foi feito com as culturas que hoje estão salvando o país”, acrescenta o reitor.

Cannabis em sala de aula

Mais do que reinventar a roda, a UFRRJ se apresenta como um polo de ensino e pesquisa sobre a cannabis. Além de estudos em manejo, farmácia e melhoramento, a escola tem uma disciplina na pós-graduação em Química voltada ao controle de qualidade e aplicação da cannabis. Uma disciplina na graduação será aberta no próximo ano.

O tema também é oferecido a alunos, especialistas e pesquisadores de fora da universidade. Professores e pesquisadores da UFRRJ e da Canapse montaram uma “Oficina sobre Cannabis: uma revisão”, para ser dada para 200 participantes. “As inscrições se esgotaram em 24 horas”, diz o reitor. “Durante dois meses, esses 200 participantes serão imersos em informações sobre a cannabis”, afirma.

Na Universidade de Viçosa, o professor Derly Silva pretende criar uma disciplina que, além da cannabis medicinal, estude também o cânhamo (a cannabis industrial) e o lúpulo, utilizado na fabricação de cerveja, todas elas plantas da família Cannabaceae. “A única variação entre a cannabis e o cânhamo é o teor de THC. E o lúpulo é o primo irmão da cannabis, que pode ser a sativa ou indica”, salienta.

O estudo do lúpulo pode melhorar a qualidade da cerveja, e tem ricas possiblidades medicinais. A planta é responsável pelas substâncias que conferem amargor e aroma à cerveja. “Tudo isso ainda é um sonho”, diz o professor. Mas não será de estranhar se, a médio prazo, surgir no mercado uma cerveja de cannabis.

Além de inovadoras nas pesquisas sobre a cannabis, as duas escolas – a UFV e a UFRRJ – têm seus cursos de agronomia entre os mais reconhecidos e antigos do país. Oficialmente, a Federal de Viçosa completou cem anos em setembro.

A Federal Rural do Rio de Janeiro faz 110 anos em outubro. Historicamente, é conhecida como a Universidade Rural do Brasil, por ter estabelecido as bases do ensino agropecuário no país.

Quem já planta maconha no Brasil

 

As duas universidades são as primeiras no país a plantar maconha legalmente em ambiente acadêmico e com fins científicos e educacionais. Mas, no país, outras escolas trabalham com o óleo importado ou cultivam a cannabis in vitro para o desenvolvimento de medicamentos, como a Universidade Federal de São João Del Rei, campus de Divinópolis (MG).

Duas associações têm autorização da Justiça para plantar cannabis e produzir medicamentos para seus pacientes associados: a Abrace Esperança, da Paraíba, e a Apepi, do Rio de Janeiro. Cerca de 110 famílias já conseguiram habeas corpus com direito ao cultivo doméstico destinado a doentes familiares.

O óleo de CBD vem sendo prescrito por mais de mil médicos de diversas especialidades, segundo dados da Anvisa do ano passado. O receituário médico é controlado pela agência e depende da concentração de THC, a substância psicoativa da cannabis.

O produto vem sendo usado para casos de epilepsia refratária, convulsões diversas, dores crônicas, Alzheimer, Parkinson, ansiedade, depressão e distúrbios do sono, entre outras patologias. O tratamento mensal com medicamento de CDB importado disponível no Brasil custa entre R$ 2 mil e R$ 3,0 mil.

Fonte: Globo Rural.

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